quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

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O bar existe apenas na lembrança dele, meu amigo que conta da cerveja compartilhada com outros na esquina da Fradique Coutinho. O bar não existe de fato, ao menos para mim e, no entanto, eu poderia descrevê-lo, falar dos detalhes das paredes envelhecidas, das mesas de madeira, das cadeiras de assento plastificado. Se quisesse, falaria também da mulher que entrou, perto da meia-noite, atrás de cigarro ou alguém conhecido.
Meu amigo tem a voz morna, viril e, com um jeito charmoso, lê trechos do texto que irá publicar. Ciúmes, amores não correspondidos, traição, espanto, desalento. Digo que percebo, nas entrelinhas, rancor. Eu o cumprimento, difícil escrever sobre um sentimento tão pequeno, tão mesquinho, e ainda por cima tingi-lo com tons de poesia...Ele escreve bem, bem demais. Fico emocionado, e talvez por isso o bar do qual ele fala torna-se real. Posso sentir o gosto da cerveja escorrendo pela garganta, fico indignado com a camiseta rasgada da mulher à procura de fumaça e companhia. Modismo ou desistência da busca de qualquer padrão estético de beleza? Esse amor sobre o qual meu amigo escreve me traz recordações. É agora em outro homem que penso, na rejeição, nos sonhos frustrados, no incompreensível recuo de quem não se permitiu o direito do prazer. Afundo na leitura de Foucault e Henry Miller.
Com o país estagnado e a economia em frangalhos, restam-me jogos intelectuais, dedutivos, apenas para não permitir que o cérebro apodreça, inerte. Esforçando-me para compreender o vazio e do deserto que me cerca, reconheço: da última relação, não ficou nada, nem ao menos uma lembrança afetiva. Penso na psiquiatria, na psicanálise, no discurso do sexo, no poder de repressão do Estado, nas interdições inúmeras que o mundo articulou para impedir, cercear e supervisionar o prazer alheio. Eu resisto. NÃO! Não admito. Não falarei sobre quantas vezes por semana faço amor, não abrirei espaço para que um desconhecido se sinta no direito de compreender meu psiquismo melhor do que eu mesmo. Se precisarem da minha confissão, nada terão. Se precisarem da descrição detalhada do quê eu pensava quando tomava banho, ou do rosto que me embalava os sonhos, ficarão sem resposta alguma.
Meu amigo está preocupado em superar a dor da perda, da impossibilidade de ter quem deseja. Procuro colocar os pensamentos em ordem, falando sem parar. Ele escuta, paciente e carinhosamente. Combinamos então nos encontrar, um bar real para ambos, cerveja de verdade, abraços sinceros e beijos fraternos. Despeço-me, desligando o telefone. Vamos escrever, nós dois, cada um no seu canto. Para outro alguém, deixo um recado, largado no espaço virtual. "Não te escondes do mundo, te escondes de ti mesmo. Espero que te encontres. Se não souberes onde estás, então não poderei jamais te achar". Fico admirando o monitor iluminado, desviando às vezes o olhar para outra janela. Chove, chove muito. Penso no trânsito que me aguarda, nos mistérios e segredos da alma, na revolta que há pouco me dominou. Cada um sobrevive como pode.

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